- fala-me de histórias de amor.
- queres saber uma minha?
- conta-ma, tenho tempo; fala-me de uma história tua ou fala-me só de histórias de amor.
- não é bem uma história que tenho para te contar, é mais uma lição.
- serve perfeitamente.
- (...) e no fim, ela seguiu em frente com a vida dela como se eu não tivesse existido. E eu, andei por muito tempo a bater com a cabeça nas paredes porque não conseguia seguir em frente. Pensava muito nela, sabes? Foi duro. Muito. Mas consegui ultrapassar. Hoje estou mais crescido e talvez tenha aprendido uma grande lição: a de que não se deve entregar a ninguém o coração de bandeja. Podemos vir a magoar-nos muito, embora sempre acabe por passar.
- obrigada pela história. E, sim, eu acho que todos vamos aprendê-lo, de uma forma ou de outra, que de bandeja não se deve entregar aquele que por desígnio de loucura ou mero acaso é o nosso órgão vital. Por uma razão que me é em parte ainda desconhecida, parece que não sabemos viver sem ele; ainda que com tanto tombo, o meu desça muitas vezes ao estômago.
- é bem verdade, mas eu pensava que era já tao crescido e cometi um erro destes.
- às vezes, vemos o mundo já de muito alto, que de tão alto que estamos e de tão crecidos que somos, esquecemo-nos o quanto as rasteiras nos atraiçoam. Mas, ultrapassamos sempre. Fazemos do coração vísceras, fazemos do orgulho tábua de salvação, fazemos do vazio atulho. Fazemos o que for preciso para sair desse buraco onde nos afundamos cada vez mais, mas o buraco desfaz-se tanto que às vezes paramos simplesmente e içamos o braço. Que nos puxem se quiserem.
- tens razão.
- adiante, sabes qual é o teu problema nos corações? É que o teu tem pele de bebé. E os da maioria têm pele seca. As pessoas são assim: esquecem-se de os hidratar. E quando tentam dar-te um banho de afecto esquecem-se que tu precisas de johnson, para não arder nos olhos. Talvez porque elas já se habituaram a qualquer um, já usam até aqueles que não lhe são indicados. Para mim é assim.
- uau, aplica-se mesmo.
- já o meu problema é ter um coração cor-de-rosa. É estranho. Têm medo de tocar. Às vezes, esticam a mão de medo. Ficam como os patos quando lhes estendes um pedaço de pão, numa postura ambivalente, esticam o bico e afastam o rabo. É mais estranho que o meu coração, mas isto digo-o eu. O pior é que neste jogo do chega-afasta, deixam muitas vezes cair o meu delicado cor-de-rosa. E para mim, o coração é para agarrar com as duas mãos. Com os pés se for preciso, junto à barriga, mesmo que ele te faça cócegas; porque as borboletas, mais dia menos dia, vão sair-te pela boca e tu vais querer continuar a sentir-lhe o gosto. A sentir esse frenesim na pele.
- sabes, eu começo a pensar que não existe uma pessoa que saiba cuidar do meu coração, realmente, como deve ser. Desferem sempre algum machucado. E isso deixa-me um bocado triste.
- e eu ainda acho que muita gente usa Johnson. Tens de cheirar, pôr o nariz no ar para ver. E quando abrires os olhos só para confirmar, tens de sentir na pele. E quando tocares na pele, tens de trabalhar o paladar. Não tens de usar ou oferecer todos os teus sentidos de bandeja, não tens que mostrar o teu baralho todo. Tens de deixar que por um, ela aceda ao outro, e que os trunfos sejam lançados não como isca que furta o rio mas como presente que se lança ao mar. Mas tu vais saber fazê-lo.